Desenvolvendo a Escrita Teológica – II


 

Neste texto continuo oferecendo diretrizes para desenvolver a escrita teológica. Anteriormente abordei dois passos indispensáveis:

 

1) Compreender que a Teologia tem sua própria linguagem;
2) Estudar obras teológicas especializadas.

 

O terceiro passo, que abordaremos a partir de agora, é a definição do campo teológico específico sobre o qual você pretende escrever. A linguagem geral da teologia não é uma linguagem totalmente abrangente. Cada área da teologia tem uma sublinguagem ou dialeto particular. Portanto, conforme a área teológica (Teologia Sistemática, Teologia Bíblica, Teologia Pastoral, Teologia Histórica) uma linguagem específica entra em ação. Mais uma vez, esse não é um fenômeno exclusivo da Teologia. Pense no Direito. Existe uma linguagem geral do Direito assim como existe uma linguagem geral da Teologia. Quando se trata de áreas específicas do Direito, como o Direito Previdenciário ou Direito Penal, existe um vocabulário que é específico destas áreas particulares. O Direito Previdenciário tem seus termos próprios e o Penal tem os seus. Esses termos não invadem outras áreas e tem sentidos próprios em cada área. Na Teologia acontece a mesma coisa. No campo da Teontologia, por exemplo, há uma linguagem vocabular própria. O mesmo acontece na Cristologia. Cada área tem os termos pertinentes ao seu assunto, e eles misturam-se com a linguagem mais geral da Teologia. A linguagem geral da Teologia perpassa todas as áreas, mas as áreas específicas da Teologia têm sua linguagem particular que é limitada ao seu campo.

 

A Teologia Histórica, por exemplo, lida com a história do desenvolvimento da doutrina. Há uma linguagem específica desse campo. Termos como: arianismo, sabelianismo, nestorianismo, montanismo, homousios, monofisismo, ou eventos como concílios, sínodos, assembleias, além do nome de personagens, cidades, etc. são próprios da Teologia Histórica. Pense nos quatro concílios ecumênicos que ocorreram entre os séculos IV e V. Neles se discutiu sobretudo cristologia, o que desembocou em discussões sobre a doutrina da Trindade. Uma imensa gama de termos foi criada para nomear e explicar uma certa doutrina. Tertuliano criou o termo Trindade. Esse breve termo em si carrega uma quantidade de informação tão grande que conceituá-lo não é uma tarefa das mais simples. O vocabulário desenvolvido nos concílios é riquíssimo e indispensável para o estudo da Teontologia e Cristologia.

 

O estudo da Teologia Histórica varia conforme a época e o grupo cristão específico. A cristologia vai ganhando novos desenvolvimentos sempre que a doutrina estabelecida é atacada ou um novo ponto é levantado e uma resposta precisa ser dada. O debate acaba expandindo o vocabulário específico da área. Algumas vezes, grupos distintos são alvos de polêmicas que geram um subcampo em uma área específica. Por exemplo: entre os batistas surgiu uma corrente específica chamada landmarkismo. O landmarkismo está dentro da Teologia Histórica, mas foi uma discussão que envolveu apenas os batistas. Não existe um landmarkismo luterano ou episcopal, nem um landmarkismo católico romano. Ele é tipicamente batista. Contudo, o landmarkismo gerou um vocabulário específico. Os termos landmarkismo e sucessionismo são verbetes que exemplificam isso.

 

Aqui outra pergunta surge: como adquirir a linguagem específica de uma determinada área da Teologia? A resposta deve ser óbvia: estudando as obras que envolvem aquela área específica. Se o seu tema é a cristologia, nada melhor do que começar lendo a cristologia em Berkhof e anotar cada termo e expressão que ele for citando; assim, o leitor vai criar a sua lista vocabular da cristologia. Essa área de estudo será examinada ao lado da Teologia Histórica, visto que o debate cristológico envolve muitos termos que também são comuns à Teologia Histórica. Aqui surge a necessidade da interdisciplinaridade. Se você deseja aprofundamento no landmarkismo batista vai precisar mergulhar na literatura dos batistas do sul dos EUA de meados do século XIX. Obras landmarkistas referências foram escritas por J. R. Graves e J. M. Carroll. Leia também a crítica ao landmarkismo. Conheça o debate e se aprofunde nele, sempre de olho nos termos e expressões próprias do landmarkismo e listando cada uma.

 

O quarto passo está diretamente relacionado a produção do texto. Apesar de ser um texto teológico, a linguagem vocabular utilizada não é integralmente teológica. Você fala, lê e escreve na língua portuguesa, e seus leitores, acredito, também esperam um texto em português. Para escrever você utilizará palavras comuns, como: verbos, preposições, adjetivos, substantivos, pronomes, etc. e fará construções que devem seguir o rigor da sintaxe e da gramática portuguesa. É dentro do universo do próprio idioma do autor que o idioma da teologia será inserido. A linguagem da teologia se submete às regras do idioma, por isso, quem pretende escrever deve conhecer sua própria língua. Na verdade, será necessário mais do que um conhecimento básico ou superficial. O estudo da gramática do português será obrigatório e contínuo, pelo menos durante alguns anos.

 

Existe uma diferença entre as linguagens da Teologia e do próprio idioma. A primeira cumpre a função técnica e essencial. Ela usará termos e expressões que são exclusivas de sua área, a Teologia, e por isso devem ser compreendidas pelo autor que as utiliza. A segunda, o português, é essencial porque contém os símbolos e as regras que permitem a comunicação adequada. A linguagem da Teologia só pode ser apresentada e compreendida se for conduzida pelo idioma do autor. Se você conseguir obter a excelência na linguagem teológica, mas naufragar no próprio idioma, não será capaz de escrever.

 

Além dos elementos acima, outras características são necessárias em um texto. Destaco a lógica em primeiro lugar, seguida do conjunto (começo, meio e fim), elucidação, clareza, harmonia e coerência entre as partes. Um simples parágrafo precisa abarcar todos estes elementos e mais uma sutil conexão com o parágrafo seguinte. A totalidade do texto deve repousar sobre essas sutilezas. O leitor que se depara com um escrito, precisa ler e entender o texto, o que significa um planejamento da escrita. Como fazer isso? Escrevendo!

 

Algumas dicas de treinamento:

 

Primeira dica: escolha um texto teológico (pode ser um tópico da Teologia Sistemática que trata da cristologia) e simplesmente copie, como os antigos escribas faziam. Faça uma cópia. Depois comece o trabalho de exame gramatical, destacando cada elemento que compõe a língua. O que for verbo, grife com a cor verde; substantivos em vermelho, adjetivos em azul, pronomes na cor laranja, circule as preposições e marque outros elementos da língua. Os termos teológicos ou palavras em outro idioma marque com duplo traço. Esse exercício ajuda a enxergar os vários elementos da língua e a função que cada um deles exerce. A forma como uma pessoa escreve treina seus pensamentos.

 

Segunda dica: treine sua própria escrita imaginativa escrevendo cartas (podem ser fictícias). Escreva sobre variados temas cotidianos e tente aplicar pontos teológicos e bíblicos. Por exemplo: escreva para um amigo que mora em outro país e fale sobre o aumento da violência no Brasil. Insira o tema da depravação total, e use termos teológicos relacionados a essa área da Teologia (consulte Berkhof) e explique ao seu amigo cada significado. Use passagens da Escritura para demonstrar ou ilustrar um ponto. Depois comece a correção. Comece corrigindo o português: palavras grafadas erroneamente, gêneros trocados, corrija o número (singular e plural), observe as conjugações verbais, uso de preposições, pronomes, acentuação. Acompanhe a sintaxe cuidadosamente e a regência verbal.

 

Terceira dica: copie passagens da Bíblia com as suas próprias palavras. Faça a sua versão parafraseada de passagens da Escritura e aplique os exercícios das dicas um e dois. Em todos os casos, comece escrevendo pequenas porções de texto. Faça uma ou duas vezes por semana um destes exercícios e prossiga repetindo os exercícios por um longo tempo.

 

Quarta dica: leia a alta literatura do seu país e as obras clássicas universais. Alguns autores brasileiros de outras épocas tinham um domino da língua que dificilmente encontramos em autores contemporâneos. Leia Machado de Assis, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Herberto Sales, Gustavo Corção, etc. Nos universais, clássicos como Homero, Cícero, Shakespeare, Goethe, Tolstói, Dostoievski, Flaubert, Balzac, etc. Estes autores não são peritos em Teologia, mas são grandes escritores, prontos a nos ensinar pelo exemplo a como escrever bem. Preste atenção como eles escrevem. Veja como constroem um argumento, como usam os verbos, como constroem uma narrativa, como pontuam. Os autores brasileiros citados acima dominavam o nosso idioma e são muito proveitosos para elevar a nossa própria escrita.

 

Por fim, quando produzir seu primeiro texto de Teologia, antes de publicá-lo ou divulgá-lo abertamente, entregue-o para que alguns teólogos mais experientes o examinem. Considere as observações e, se preciso for, revise o texto. Essas poucas dicas já são suficientes para mudar sua escrita da água para o vinho.